Após um dia puxado, poucos prazeres são tão eficazes para relaxar quanto abrir uma boa cerveja. Melhor ainda se, ao saboreá-la, ela desafiar o olhar e surpreender o olfato. As chamadas hazy beers — cervejas turvas, opacas, quase misteriosas — vêm ganhando destaque nas torneiras e prateleiras mundo afora, não apenas pelo visual, mas por oferecerem uma experiência sensorial intensa e memorável. Mais do que uma aparência “embaçada”, as hazy escondem uma revolução técnica, histórica e aromática que vale conhecer.
O que são cervejas Hazy?
A palavra “hazy” traduz-se como “enevoada” ou “turva”, e já dá uma pista importante sobre o visual dessas cervejas. Diferente das clássicas Pilsens douradas e cristalinas, as hazy são propositalmente opacas, quase leitosas. Essa turbidez não é um defeito, mas um traço característico e desejado, fruto da combinação de técnicas específicas de brassagem e da escolha de ingredientes que, juntos, desafiam o dogma da limpidez como sinônimo de qualidade.
No copo, uma hazy lembra suco de maracujá ou de laranja com manga. Na boca, ela entrega explosões de frutas tropicais, corpo sedoso, amargor contido e uma suavidade que cativa mesmo os menos habituados aos lúpulos ousados.
Como são fabricadas?
O segredo das hazy começa na escolha dos grãos. Utiliza-se, além da cevada maltada tradicional, quantidades generosas de trigo e aveia, que adicionam proteínas e beta-glucanas à mistura. Esses compostos não apenas ajudam a criar uma textura mais aveludada, como também colaboram para a turbidez estável.
Mas o verdadeiro protagonista é o lúpulo. A técnica conhecida como dry hopping em estágios tardios — muitas vezes durante ou após a fermentação — injeta óleos essenciais na bebida sem extrair o amargor típico da fervura. O resultado é uma explosão aromática com notas que lembram manga, maracujá, pêssego, laranja, abacaxi e até bala de goma. Importante destacar: as partículas de lúpulo em suspensão e os compostos bioquímicos resultantes da interação com as leveduras são os principais responsáveis pela aparência “nebulosa”.
Essas cervejas normalmente não passam por filtração, tampouco por pasteurização, o que preserva aromas voláteis mas exige cuidado com armazenagem e frescor. Uma hazy oxidada perde seu brilho — tanto no copo quanto no paladar.
Um pouco de história
O surgimento das hazy está ligado ao movimento das New England IPAs, ou NEIPAs, na costa nordeste dos Estados Unidos, especialmente em Vermont. A cervejaria The Alchemist, com sua icônica “Heady Topper”, é frequentemente citada como precursora desse estilo. Lançada em 2003, ela causou furor entre os hopheads ao combinar carga aromática intensa com aparência turva e textura cremosa. Ao contrário das IPAs tradicionais do oeste americano, que valorizam a secura e o amargor resinoso, as NEIPAs propunham algo mais frutado, suculento, quase hedonista.
A recepção calorosa do público levou à disseminação do estilo por todo o mundo. Atualmente, encontramos hazy beers não apenas em IPAs, mas em Pale Ales, Session IPAs, Double IPAs e até em estilos mais híbridos como sour hazy ou brut hazy.
Diferenças sensoriais e experiências
Visualmente, a hazy causa impacto. Quem a vê pela primeira vez pode pensar tratar-se de uma cerveja contaminada ou mal feita. Mas o primeiro gole dissipa qualquer desconfiança. A textura aveludada reveste o palato como um cobertor macio, e os aromas frutados — que às vezes evocam até chicletes ou sucos exóticos — criam um efeito quase narcótico.
O amargor, embora presente, é arredondado, menos agressivo. Isso amplia seu apelo, inclusive entre quem normalmente torce o nariz para as IPAs mais secas e amargas. A carbonatação costuma ser moderada, reforçando a sensação de corpo médio a alto, sem ser enjoativa.
Outro ponto notável é a sensação de “suco alcoólico”. Muitos descrevem as hazy como uma espécie de smoothie alcoólico de frutas tropicais. Claro, essa comparação é apenas uma metáfora sensorial. A complexidade da bebida vai além disso, com camadas que se revelam conforme a temperatura sobe no copo.
Estilos e variações
As NEIPA's são a expressão mais clássica da categoria. Outras variações incluem as Double Hazy IPA, com teor alcoólico acima de 8% e carga de lúpulo ainda mais extravagante. Há também as Session Hazy IPA, que mantêm os aromas mas reduzem o álcool, ideais para tardes prolongadas.
Algumas cervejarias ousam cruzar o estilo com outros elementos: já existem sour hazy com adição de frutas ácidas, brut hazy com final seco semelhante a espumantes, e até black hazy, que unem maltes escuros a lúpulos tropicais.
No Brasil, cervejarias como Dogma, Trilha, Dádiva e Everbrew têm investido fortemente em rótulos hazy, com resultados excelentes. Vale buscar também rótulos da Other Half, Tree House ou Equilibrium, caso queira explorar os exemplares internacionais.
Uma curiosidade que poucos sabem
Um estudo sensorial conduzido por universidades americanas mostrou que a percepção frutada das hazy IPAs se intensifica em ambientes mais iluminados. Ou seja, beber uma hazy ao ar livre, no fim de tarde, pode amplificar o prazer. Isso ocorre porque o estímulo visual da cor turva e vibrante aciona áreas cerebrais associadas a frutas e sucos, o que eleva a expectativa e o reconhecimento de sabores — um exemplo fascinante de como o cérebro “bebe com os olhos”.
As cervejas hazy representam mais que uma tendência. São fruto de uma busca por experiências sensoriais mais completas, por texturas que acariciam o paladar, por aromas que transportam para mercados tropicais e momentos de descontração. Elas não querem apenas saciar a sede; querem provocar prazer, conversa e contemplação.
Se você ainda não se rendeu à neblina das hazy, talvez seja hora de abrir espaço na sua próxima folga. Escolha uma boa taça, sirva com calma, sinta o aroma antes de beber e permita-se vagar nesse nevoeiro de frutas e malte. Nem toda névoa é confusa. Algumas apenas indicam o caminho para uma cerveja memorável.
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