sábado, 10 de maio de 2025

Quando o Selvagem Encanta o Copo: Gueuze e Brett Bier em Diálogo

Gueuze vs Brett Bier: diferenças, semelhanças, fermentação com levedos selvagens, aromas, sabores, história, cores, cervejas ácidas e artesanais.

Você já sentiu o calor do concreto envelhecido de Bruxelas e, ao mesmo tempo, percebeu a força indomável do Bretanomiceto livre em sua taça? É nessa fronteira frágil entre tradição e inovação que se encontram Gueuze e Brett Bier, estilos que compartilham o fascínio pelos levedos selvagens e, ainda assim, guardam suas próprias histórias, personalidades e segredos sensoriais.


Origens que se cruzam

A jornada da Gueuze remonta ao coração da região do Pajottenland, nas redondezas de Bruxelas, onde monges e camponeses descobriram, há séculos, que deixar a cevada e o trigo descansar à mercê do vento resultava numa mistura espontânea de micro-organismos capazes de criar aquela acidez cítrica e levemente lambic. Já o Brett Bier nasceu da curiosidade de cervejeiros artesanais modernos, sobretudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, que notaram, por acaso, a presença de Brettanomyces em seus barris de madeira e, ao invés de combatê-lo, resolveram explorá-lo como fermento principal ou complementar. Em ambos os casos, há uma reverência ao “selvagem”, mas um passa pela tradição secular de maturação em pipas de carvalho enquanto o outro aposta na experimentação de novas receitas e madeiras.


Da fermentação espontânea ao fermento selecionado

A Gueuze obriga o mestre-cervejeiro a confiar no terroir belga: a mistura de leveduras, bactérias e Brettanomyces chega ao mosto sem intervenção, por meio de janelas abertas ou incubação em tonéis que respiram. Esse método resulta em camadas de acidez que se mesclam ao caráter terroso e frutado, definindo o que conhecemos como “funk” clássico. No Brett Bier, por sua vez, o uso do Brettanomyces pode se dar de modo controlado, com cepas isoladas e quantidades precisas, conferindo ao cervejeiro liberdade para brincar com o frescor do lúpulo, o caráter de malte e diferentes tipos de madeira — tudo isso mantendo o toque ácido e complexo que só o Brett oferece.


A paleta de cores e a dança das texturas

Num primeiro olhar, a Gueuze costuma exibir tonalidades que variam do amarelo palha ao dourado envelhecido, às vezes com reflexos acastanhados vindos do carvalho antigo. A carbonatação natural, resultante da refermentação em garrafa, forma uma espuma cremosa e persistente, cuja leveza contrasta com a sensação seca e quase adstringente no final do gole. Já o Brett Bier apresenta maior diversidade visual: algumas versões mantêm o amarelo vívido de uma Saison, outras exploram alaranjados suaves ou mesmo tons âmbar, dependendo dos maltes e das madeiras utilizadas. A efervescência costuma ser viva, porém menos “feita” para suportar décadas de envelhecimento, preferindo revelar seu abraço efervescente já nos primeiros meses.


Aromas e sabores: do campo belga ao laboratório criativo

Quando você aproxima a narina de um copo de Gueuze, percebe notas de maçã verde, pêssego delicado, além de um barnyard que lembra palha úmida e terra fresca após a chuva. No paladar, o ataque cítrico ganha companhia de nuances de maçã madura, camomila e um leve toque láctico que, em algumas garrafas, dessinalha-se como melancolia de bosque outonal. Em contraste, o Brett Bier pode surpreender com um leque maior de frutas tropicais, desde abacaxi até maracujá, esparramadas num fundo seco que sugere couro e tabaco envelhecido. Se o Gueuze conversa com o passado, o Brett Bier parece vir do futuro — aquele futuro onde a química orgânica e a leveza fermentativa se encontram num gargalo colorido.


O que une e o que distingue

Ambos convidam o curioso a abandonar a previsibilidade de uma Pilsen ou de uma IPA robusta e se lançar numa viagem sensorial repleta de nuances imprevisíveis. Compartilham a reverência ao microbioma cervejeiro, ao uso de frascos que amadurecem lentamente e à entrega de cada gole como um convite à reflexão. Entretanto, a Gueuze é fruto de uma geografia específica, dependente de métodos imemoriais e de pipas que atravessam gerações; o Brett Bier nasce da ousadia contemporânea, da liberdade para combinar madeiras, maltes e lúpulos inusitados e até de explorar versões sem glúten ou com frutas raras.


Você que busca na cerveja não apenas a refrescância, mas uma história engarrafada, encontrará na Gueuze a tradição líquida que sussurra segredos do Pajottenland e remete a séculos de paciência. Se o desejo for por algo que misture tradição e vanguarda, o Brett Bier oferece um universo em mutação, onde cada safra resguarda uma nova surpresa. Em ambos os casos, o levedo selvagem reina absoluto e garante que cada taça transcenda o ordinário. Agora, que tal escolher uma garrafa, apreciar os aromas e brindar à diversidade selvagem que só a cerveja pode oferecer? Saúde! 


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Autor: Thiago Neto

Autor: Thiago Neto
Minha expertise em cervejas vem da leitura do Larousse da cerveja, Guia Oxford da Cerveja, dentre outros e experiências em degustar variedades de cervejarias do Brasil e exterior, grandes e artesanais. Isso aprimorou minha compreensão de métodos de serviço, harmonização e degustação, ampliando meu conhecimento dos estilos cervejeiros.