Entre um gole e outro, a revolução das IPAs trouxe ao copo não apenas amargor, mas também aroma, textura e complexidade. E foi nesse terreno fértil que floresceu uma vertente intensa, encorpada e suculenta: a Double New England IPA — ou simplesmente Double NEIPA. Ainda fora dos guias de estilo mais tradicionais, como o BJCP, essa variação ganhou o paladar dos apreciadores mais exigentes com sua potência aromática, aspecto turvo e um perfil que desafia classificações simplistas. Não é só mais uma IPA turva; é um fenômeno contemporâneo de intensidade e equilíbrio, digno de atenção cuidadosa.
A gênese nebulosa da Double NEIPA
A New England IPA surgiu como contraponto à West Coast IPA. Se a costa oeste americana exaltava o amargor resinoso, a costa leste optou por suculência, turbidez e perfil sensorial dominado por frutas tropicais. Esse estilo explodiu a partir do início da década de 2010, com destaque para rótulos do Vermont e Massachusetts. A versão “Double” apareceu naturalmente, impulsionada pela busca por mais potência alcoólica e expressão aromática. Trata-se de um desdobramento espontâneo, sem canonização formal.
Apesar da ausência de regulamentação específica, a Double NEIPA já está bem delimitada entre produtores e entusiastas: uma cerveja que mantém os pilares da NEIPA, mas com uma graduação alcoólica ampliada e corpo mais robusto. Não é apenas "mais forte"; é uma arquitetura sensorial mais densa, com camadas sobrepostas de aroma, sabor e textura.
Características visuais e sensoriais
O visual é parte essencial da identidade da Double NEIPA. No copo, apresenta aparência opaca, com turbidez que lembra suco de frutas. Essa turbidez decorre de proteínas de trigo e aveia, leveduras em suspensão e alta carga de dry hopping. O EBC varia geralmente entre 10 e 20, situando-se em tons dourado-alaranjados, às vezes puxando para o palha fosco, sempre com espuma cremosa e persistente.
A grande estrela, no entanto, é o aroma. Cargas generosas de lúpulos modernos — Citra, Mosaic, Galaxy, El Dorado, Sabro e afins — conferem uma profusão de notas frutadas: manga, maracujá, pêssego, abacaxi, tangerina e até coco e baunilha, a depender da seleção. O dry hopping em múltiplas fases é comum e favorece os extratos voláteis sem extrair amargor em excesso.
No paladar, o amargor é moderado, raramente agressivo. Apesar do nome "IPA", a Double NEIPA rejeita os IBUs elevados como fetiche. Seus valores variam entre 30 e 60 IBU, mas o dulçor residual e o corpo aveludado reduzem a percepção do amargor. O álcool, que geralmente fica entre 7,5% e 9,5% ABV, aparece aquecido, mas bem integrado. A sensação tátil é macia, quase oleosa, devido ao uso de aveia e trigo maltado.
Ingredientes e processos que fazem a diferença
A base maltada geralmente inclui malte pilsen ou pale ale, com trigo e aveia para conferir turbidez e corpo sedoso. A adição de lactose é rara, mas não inexistente — pode ser usada para reforçar a suavidade. Os lúpulos são adicionados preferencialmente no whirlpool e no dry hopping, em quantidades absurdamente altas. Muitos cervejeiros adotam o hop bursting ou hop stand, técnicas que maximizam aroma e sabor sem subir IBUs.
As leveduras escolhidas são frutadas e pouco floculantes, como a Vermont Ale ou London Fog, capazes de ressaltar ésteres frutados e manter turbidez. A fermentação costuma ocorrer a temperaturas ligeiramente mais altas para liberar compostos aromáticos e manter o caráter suculento que se espera do estilo.
Temperatura de serviço e copo ideal
A Double NEIPA deve ser servida entre 6°C e 8°C. Temperaturas mais baixas mascaram os aromas e endurecem o corpo; mais altas ressaltam o álcool. O copo ideal é o Teku ou o Snifter, que concentram os voláteis aromáticos e permitem uma degustação mais contemplativa. Servir em pint inglês ou americano, embora comum, dilui parte da experiência sensorial.
Harmonizações gastronômicas
Surpreendentemente versátil, a Double NEIPA harmoniza bem com pratos que equilibram gordura e acidez. Queijos de média maturação como gouda e brie casam-se com a textura cremosa e frutada. Frutos do mar grelhados, com toque cítrico, ressaltam os aromas tropicais. Hambúrgueres artesanais, sobretudo os com maionese caseira e cebola caramelizada, encontram equilíbrio entre dulçor, sal e amargor. Para sobremesas, pense em mousse de maracujá, cheesecake de frutas vermelhas ou panna cotta com redução cítrica.
Curiosidades
A turbidez das Double NEIPAs não é sinônimo de negligência ou desleixo técnico. Trata-se de um elemento desejado, construído com precisão e controle microbiológico. Muitas cervejarias artesanais tratam sua receita como obra autoral, com refinamento em cada detalhe — desde o perfil da água até o momento exato do dry hopping. Há até quem argumente que essas cervejas devem ser consumidas jovens, com no máximo 60 dias de envase, para preservar o frescor lupulado.
O estilo também alimenta debates no mundo cervejeiro. Puristas criticam a falta de amargor e a opacidade, enquanto apreciadores contemporâneos defendem a sensorialidade como prioridade. É um embate entre tradição e evolução, que reflete a própria transformação do paladar da nova geração de degustadores de cerveja.
A Double NEIPA é, por definição, uma transgressora. Recusa-se a ser encaixada nos manuais clássicos e ainda assim conquista espaço em torneiras e prateleiras ao redor do mundo. É uma cerveja para quem busca impacto, mas não se contenta com o óbvio. Para o entusiasta que deseja algo mais do que uma cerveja comum, ela entrega complexidade, prazer e desafio sensorial. Talvez ainda não tenha um lugar formal entre os estilos oficiais, mas na geladeira dos iniciados, já conquistou território definitivo.
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