Depois de um dia puxado, nada melhor que descansar com uma boa leitura acompanhada, quem sabe, de uma cerveja curiosa. Hoje vamos falar de algo que pouca gente conhece: o gruit. Antes da dominação absoluta do lúpulo nas receitas, as cervejas eram feitas com uma mistura de ervas aromáticas que variava de região para região. É um capítulo quase esquecido da história cervejeira, mas que vale ser redescoberto — não apenas pela curiosidade, mas pelo resgate de sabores que desafiam o paladar moderno.
Uma cerveja sem lúpulo?
A ideia de uma cerveja sem lúpulo pode soar herética para o bebedor contemporâneo. Afinal, o amargor e o aroma lupulado tornaram-se quase sinônimos da boa cerveja artesanal. Mas, por séculos, o lúpulo simplesmente não fazia parte da receita. As cervejas da Idade Média eram temperadas com o gruit, uma mistura de ervas e especiarias que variava conforme a época e a região.
Essa mistura era mais do que um aromatizante: também servia como conservante, afrodisíaco, remédio e até ingrediente ritualístico. Algumas fórmulas incluíam mirra, zimbro, alecrim, louro, camomila, artemísia e sweet gale (ou myrica gale), uma planta de pântano muito comum no norte da Europa. Outras levavam canela, cravo, noz-moscada e até alucinógenos leves, como beladona ou henbane — tudo dentro da lógica cultural da época.
Quem controlava o gruit, controlava a cerveja
O gruit não era apenas uma questão de gosto. Sua produção e comércio eram monopólios controlados por autoridades religiosas ou políticas. O direito de vender gruit conferia poder e lucro. Muitas cidades medievais europeias tinham o Gruthaus, ou casa do gruit, que supervisionava a distribuição da mistura para os cervejeiros locais.
Com isso, o gruit também virou instrumento fiscal. Para produzir cerveja, o mestre cervejeiro precisava comprar o gruit oficial, pagando taxas. Era um controle parecido com o das moedas ou selos postais, e as receitas eram mantidas em segredo. Cada região tinha seu perfil aromático e sua identidade sensorial própria, o que tornava as cervejas profundamente locais.
A chegada do lúpulo e o declínio do gruit
A substituição do gruit pelo lúpulo começou por volta do século XIII e se consolidou nos séculos seguintes. O lúpulo mostrou-se mais eficiente como conservante e mais padronizável como ingrediente. Ao contrário do gruit, que exigia uma cadeia de fornecedores e fiscalização, o lúpulo podia ser cultivado em larga escala e armazenado com facilidade.
Além disso, o uso do lúpulo passou a ser incentivado por estados emergentes como a Baviera, especialmente após a promulgação da Reinheitsgebot em 1516 — a famosa “lei da pureza” alemã, que determinava que a cerveja só poderia levar água, malte e lúpulo (a levedura ainda não era conhecida como tal). A substituição não foi imediata, mas ao longo de duzentos anos, o gruit praticamente desapareceu das tavernas e das cervejarias.
Ainda existe gruit hoje?
Sim — e, para a surpresa de muitos, ele voltou. No rastro da revolução das cervejas artesanais, alguns produtores passaram a resgatar estilos históricos. O gruit ale reapareceu como uma curiosidade etílica, sobretudo entre cervejeiros experimentais e apreciadores de tradições perdidas.
As receitas contemporâneas evitam ingredientes tóxicos, mas mantêm o espírito do gruit original: são cervejas sem lúpulo, com corpo mais doce, acidez leve e amargor proveniente de ervas, raízes e especiarias. A diversidade é tão grande que não existe um “perfil padrão”. Beber um gruit é sempre uma surpresa.
Alguns festivais, como o International Gruit Day, celebrado em 1º de fevereiro, reúnem produtores que se dedicam a essa vertente histórica, e algumas microcervejarias da Europa e dos Estados Unidos oferecem rótulos fixos de gruit em seus portfólios.
O gruit é um lembrete de que a história da cerveja é muito mais ampla do que a tradição lupulada que conhecemos hoje. Suas fórmulas misteriosas, seu papel social e político e sua recente redescoberta tornam o tema fascinante — ainda mais para quem aprecia o prazer de beber com contexto. Em tempos de padronização e rótulos cada vez mais parecidos, revisitar o passado pode ser um ato de sabor e rebeldia. E talvez, da próxima vez que você levantar um copo, pense: o que mais já esquecemos que vale a pena provar de novo?
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